quinta-feira, outubro 18, 2007

Recontos: O assassinato de Guimarães Rosa

O dia em que assassinei Guimarães Rosa e o conto: A terceira margem do rio

Estes (re)contos são frutos de uma cadeira acadêmica que curso neste semestre na faculdade de Letras. Sinto perder a humildade e o senso de perigo ao publicar tais (re)contos. Publico-os por uma questão maior que a de simplesmente expôr por expôr, por querer registrar o ato de coragem e loucura a que me submeti: Recontar Guimarães Rosa. É um ato extremo de quem tem uma missão valendo nota... Recontar é assassinar, lembro-lhe, caro leitor!
Uma observação que devo fazer é a de que assassinei a língua portuguesa propositalmente, assassinei os estilos tradicionais e, talvez, eu tenha assassinado toda a minha sonhada e fututra carreira e o meu blog, espaço esse, até então não profanado...
Outra observação é a de que, na primeira versão, além de assassinar o Rosa, profanei Mia Couto. O que não se faz em desespero!

Veja a primeira versão, a qual descartei por não ter coragem de lê-la:


O Segredo do Rio


Eu, homem sério nascido no sertão, aos trinta e sete anos, com esposa e filhos, acordei um dia resolvido em encomendar uma canoa. Não qualquer canoa! mas uma especial, uma que me desse firmeza para muitos tempos. Quando a canoa ficou pronta, a minha mulher fez seus resmungos, mas nem mesmo ouvi. Fiquei com pena foi do menor, mas não podia negar o chamado que sentia, porque vinha do rio.
Era um dia de sol esse em que parti. Nem mesmo necessidade senti de carregar alguma coisa a mais para a viagem, apenas o chapéu. Parecia que eu tinha até pressa. Sai sem dizer muito, não queria perder o chamado, foi apenas um seco adeus.
Parti. Meu coração quase que perdeu o chamado quando vi o menor tentado a vir com o pai dele. O pobre era de dar pena, pois não queria que eu patisse sozinho.
Semanas já eram passadas que eu só canoava, quando fiz encontrado do que eu sentia ter de encontrar, uma esteita passagem no meio do rio. Era um portão bem estreito que só passava mesmo uma canoa, era feito da cor da lua. Esse eu encontrei na noite da tempestade, não sei dizer onde estava, nunca tinha visto antes, mas apenas pensado ter visto. Isso na noite que quase morri quando era jovem e ia para as aventuras. Passei a passagem e já se fazia dia. Encontrei cidade nova, encontrei trabalho, fiz casa boa com plantação e tudo. Procurei então de volta a passagem para buscar a minha família para morar nessa nova terra, terra abençonhada[1].
Meses passaram, quando descobri uma gruta que ficava aqui mesmo na cidade nova, perto do porto. Os antigos daqui dizem que, com a magia do coração mais a magia da água que corre pelas pedras, a gente pode ver aqueles por quem a gente sofre saudade, e, somente quem bem nos sofre nos vê também.
Sempre via a minha família. Fiquei muito aborrecido quando minha mulher mandou vir aquele irmão dela para cuidar do pouco que era nosso. Tinha medo que ele pusesse tudo abaixo. E pior aborrecimento desta vida foi o da minha filha ter feito casamento com aquela coisa sem eira e nem beira que a levou embora; não queria ver ninguém dessa categoria levando minha filha. Depois, me aborreci mais ainda quando o mais velho abandonou a mãe para ir ter emoção, foi aí que a mulher teve doidera de vez e se mandou para as bandas da minha filha. O que sempre me tocava no peito, mas que também me aborrecia, era o menor. Que doidera foi aquela de ficar me esperando! O moleque, de tanto me imaginar voltar, ficou quase eu em pessoa. Eu que sempre via nele um doutor, agora ver a própria imagem do eu, era de endoidecer. De tanto aborrecimento que via, achava até que era coisa do demo, porque só via o que para mim não existia.
Depois que aquela coisa levou minha filha e mulher, nunca mais consegui as ver. Foi logo, aquele meu cunhado morreu, o que me deu até alívio, e meu menor cuidou de tudo meio sem cuidado, pois só queria cuidar do rio para ver se eu voltava. Cada vez mais que eu ia na gruta, menos eu acreditava que era possível ver verdade. Eu queria mesmo era voltar e ver que tudo ia bem, mas cadê a diacha da passagem? Já tinha percorrido a cidade nova toda, as margens de seu rio, e nada. Eu perguntava pras pessoas mas ninguém dava a direção certa. Eu achava estranho era a noite que nunca vinha. Se vinha, era eu que nunca via. Talvez aquele portão daqui só fosse visto de noite, já que era da cor da lua. Eu procurava nunca fazer dormido para não perder a hora de busca, mas quando ia ver era dia e sempre dia.
Não sei quanto tempo passou até que o meu patrão me disse que eu já poderia ir buscar minha família, mas teria de voltar logo, senão não daria mais para voltar. Pensei que todo mundo estaria lá na margem me esperando. Que nada! Só o menino mesmo. Ah, esse moleque não teve jeito mesmo. Mas olhando assim até dá pena. O rapaz nem quis perder tempo com casamento, mas perdeu toda a vida de fôlego. Agora, vindo ele comigo, eu caso ele com moça boa de família.
Fiz a partida, tomei o chapéu na cabeça, o que há muito não fazia, mas acho que dormi no meio do caminho, porque não vi a passagem, nem mesmo lembro se vi a noite. Cheguei então na margem mesma que parti e lá fiz encontro com o menor. Não sei se ele não me conheceu mais, só sei que ele fez fugido de mim.
Devo ter me aborrecido tanto que nem vi voltar. O sofredor foi tanto que doeu no peito e devo ter tido aquele dormidor de gente fresca. A minha canoa voltou sozinha pra cidade nova me carregando como mágica. Nunca mais consegui por as vistas no moleque pela gruta. Acho que ele abandonou tudo e foi ter com aquele desgosto da minha vida, o desbeirado do meu genro.
Sei que a noite mesmo nunca vi daqui. Diz-se por aí que é porque quando ela vem e quando ela vai tudo dorme e nada a vê. Só mesmo o sol. Sei também que sofri dano do chapéu. Esse fez perdido no meio da última viagem. Agora só trabalho. Sou homem sério ainda, mas agora sozinho para sempre.

[1] Abençonhada: Neologismo criado pelo escritor africano Mia Couto, na obra Terra Sonâmbula.


Veja, agora, a segunda versão:



O primeiro e o último ensinamento: o Grande Rio.


Fora chegada a hora. A hora mesma que a ninguém escapa. A hora da vida prometida nesta terra. Aqui pode ser diferente de aí, porque aqui a hora é ditada pelo rio, aliás, tudo aqui é ditado pelo rio. É como dizem, a vida tem que seguir o seu curso, a vida é como um rio; para a gente desta terra esse era sempre o primeiro e o último ensinamento da vida. É pena que nos dias que correm, os homens não entendam mais esse simples ensinamento; hoje todos têm medo da vida e dos cursos que essa segue. É o rio que um dia, em sonho ou não, mostra, mostrava, os caminhos aos homens desta terra.

Foi assim com Nestor. Ah, o Nestor, homem sério, cuja família se perdeu porque fugiu ao entendimento dos cursos do Grande Rio, da vida. Se perderam todos da mulher ao caçula; eu mesmo vi tudo e até me perdi no final, por piedade. Talvez o próprio Nestor tenha também se perdido nos cursos de seu rio.

Nesta terra fazia sol e tinha sempre uma brisa acolhedora. Quando chovia era de pôr medo até a terra, que parecia até sangrar de dor. Quando os velhos ainda eram ouvidos, eles diziam que se chovia na terra, era porque os homens estavam sendo castigados e só a pura água da chuva poderia apagar deles o pecado da carne que consumia a terra toda em seca plena.
Nesta terra, era costume morar sempre à margem do rio, pois era de onde tiravam o peixe e a água. Mesmo a plantação era movida melhor ali. Era no rio que se nascia e era no rio que se morria.

Nestor despertara certa vez com a idéia de ir pelo rio sozinho para ver o que não se via dali.

O rio era grande, fundo, de águas caldolentas e escuras, era sempre calado, era misterioso. Tinha margens largas, não se via o fim nem o começo dele. Era o próprio mistério. Todos os que saíram por seu curso, jamais voltaram, o que dava medo. Não se sabia se morriam, se viviam melhor, se simplesmente já se eram.

Nestor, em segredo, mandou fazer uma canoa das bem-boas, daquelas que era para quem a queria pelo sempre. Quando a canoa ficou pronta, sua mulher sofreu doideira e ele não nem quis dar conta. Sem quase nem um adeus, Nestor se foi ao rio, em solidão; se foi só de chapéu a mão. O mais novo dos meninos, era de ter pena, era mesmo de sofrer. Era com o pai dele que ele mais tinha sentido das coisas. Agora e sempre, desde a ida, o menino está a esperar a volta do pai.
E Nestor em curso do rio era visto, mas se tentado alcançar, se sumia e ninguém o via e nem podia falar a ele. O mais novo tinha o costume de pôr comida para o pai dele toda noite, como se o pai viesse buscar mesmo. Isso era o costume da terra que se fazia viver no menino, mas que o povo já se esquecia.
Com o tempo, só o menino mesmo via o pai. A família se partiu na desesperança de Nestor voltar. Nestor não voltava e nem ia voltar mais; nem mesmo existia na voz daqueles dele. A família não era mais dele, nem ele mais era dela.
Depois da última chuva, foi isso: se foi o mais velho em busca de aventura, a menina casou e se foi; a mulher, grávida dos não saberes da ira, também se foi. O menino mais novo à margem ficou, a espera do pai que voltaria, sem mais nem menos.
Nem mesmo o menino via mais a imagem do pai dele depois da chuva. E, mesmo assim, o menino se condenou à margem. Todo dia, o menino fazia chamado na beira, mas nada via, nada vinha. O menino que não era mais menino fazia sempre frente ao rio com o entregado da comida de noite e o chamado de dia. A comida sempre se sumia, se consumia como o fôlego daquele que a deixava.
Ao ritual do dia, num dos correntes do curso do rio do menino, ele viu de longe o pai dele. Ele vinha diferente, depois de muito tempo passado. Nestor acenou e o menino, feliz e amedrontado, evocou desejo de com ele fazer trocado de seu lugar, e o pai vinha, como se aceitasse. O apavoramento do não entendimento, do envelhecimento do fôlego já abreviado do menino, fez ele estremecer, correr e chorar.
O menino se perdeu agora do Grande Rio que a ele dava o curso. Era chegada a hora, e o menino a desentender o ensinamento, fugiu. Do pai nunca mais soube nem mesmo viu. Nem frente mais à margem, em ritual do dia e da noite, fez. Nem à margem mesmo foi mais à toa. Ficou só, entregue apenas à dura e seca margem de si, a espera de se secar pelo todo e passar ao rio pelas mãos de outros.

Depois desse último medo do Grande Rio, o rio nada mais ditou. Nem há mais rio, nem mais terra. Tudo se fez perdido nos pecados da carne e nem chuva de água pura vem mais para apagar eles. Tudo secou e tudo inundou. E tudo se acabou.

sexta-feira, agosto 24, 2007

Contos do sul

Barbaridades

É de tarde. Todos já almoçaram. Os donos da casa agora estão no jardim com suas visitas.

-Ah, com certeza! Se eu um dia eu pegar o Perez me traindo, eu o mato com o tiro na testa e mato a pilantra com um tiro no peito. Não faria nenhum escândalo, nada. Seriam apenas os dois tiros. Depois, eu sairia numa boa, tranqüila, iria embora para bem longe apenas com a roupa do corpo.

-Credo, amor, para que tanto? Imagina, eu, o teu maridinho, te traindo. Jamais! Você é a minha estrela norteadora. Jamais.

-Luna, capaz mulher! Tu seria assim, tão sangue frio?

-Aha! Me sirva mais um. Se ele ousar me testar assim, com certeza, com certeza.

-Hehe, Perez, Perez, Tu está ferrado, meu velho! Vê só, a senhora Ventania, ela é braba, tchê!

-Carlitos, que nada, essa aí... Quem manda sou eu, ela só obedece! Essa brabeza aí é só porque já tragou uns e tá na frente das visitas.

-Vê só Zélia. Esse aí se acha o Todo Poderoso.... Tadinho.

-Luna, dá licença de eu usar o teu banheiro?

-Capaz, tu me pedindo licença. Vá!

-Dona Luna, dona Luna!!!!! Acode aqui que a Zilá tá tendo um troço!

-Zilá! Zilá! Mais o que foi que aconteceu com ela?

-Ela estava no telefone e desmaiou. Não sei nem com quem ela estava falando.

-Zilá! Zilá! Dona Luna? Meu irmão...

-Calma Zilá! Pega água pra ela, anda!

-Me conta, agora, o que aconteceu?

-Meu irmão foi preso. É coisa do Miltinho. Meu irmão é muito sério, não dá pra essas coisas.

-Calma, tchê!

-A minha mãe, dona Luna, ela não pode sofrer de nervoso. Ela é velha já, sabe?

-Tá, e aí, tu vai lá?

-Se a dona Luna deixar...

-Vai, te manda mulher, te manda, capaz!

-O que foi Luna, que houve lá dentro?

-A Zilá que teve um troço. O irmão foi preso, ela está com medo da mãe dela passar mal com a notícia, sabe? Dei folga de uns dias para ela ir ver o que pode fazer.

-Gente, a conversa está boa, mas nós temos de ir. Amanhã é segunda-feira e o Carlitos tem que ir trabalhar.

-Luna! Luna!

-Que foi, homem? Que agonia é essa?

-Entra e fecha a porta!

-O que foi?

-Cadê a arma que eu guardava no cofre? Anda! Cadê?

-E eu vou saber?

-Tu disse hoje mesmo que me mataria com tiro na testa e o escambau, e agora vem me dizer que não sabe de arma alguma?

-Mas eu não sei. Falei por falar.

-Pera aí, que tu vai ver uma coisa.

-Júnior, Amanda, Isa, Zélia, todos da casa, agora aqui!

-Alguém sabe do meu Smith?

-O que pai?

-Falo do meu revólver! Bah! O mesmo com qual a sua mãe jurou lá fora que me mataria! Ele sumiu!

-Não jurei que te mataria, e muito menos que seria com o teu Smith!

-Mas falou que me mataria. Chora mesmo! Chora! Porque os nossos amigos são testemunhas do que tu falou e eles vão te entregar!

-Pai!

-É! Fala agora pros meninos o que você disse lá fora! A dona Luna falou que me mataria com um tiro na testa!!! Veja só! Agora, o meu Smith sumiu! Só pode ter sido ela, já armando uma cilada!

-Tu vai ver! Tu vai me pedir perdão mesmo que morto. Barbaridade! Como que faz isso comigo. Tu tá doido é?

-Chora! Tá com remorso? Cadê o teu amante para me matar?

-Pai, tu enlouqueceu? Pare com isso já. Bah!

-Tua mãe que tá armando uma já para me matar. E a bisca ainda avisa em público, tchê! Tá pensando o que?

-Mãe, deu! Vamos lá pra cima. Tu dorme hoje lá com a gente!

-Véio, tá vendo só! Nem foi ela que pegou o Smith. Vê só o que tu tá fazendo.

-Ela falou! Ela falou que matava eu na testa!

-Ah?

-É isso aí! Que me matava com tiro na testa e tudo! Bah. Vê só o demônio que é essa ventania?

-Pai, não é assim. E por que afinal que ela disse que te matava assim?

-Se ela me pegasse traindo.

-Aha! Então tu está traindo ela?

-Eu? Quem foi que disse essa bobagem?

-Se tu está assim num desespero de dar dó...

-Eu? Mas é nunca, tchê! Perdeu o juízo foi, teu moleque? Não sabe mais quem é teu pai?

-Mas então? Pra que tanta brabeza?

-A mulher me jura de morte, e o meu Smith some! Tchê! Tu? Como é que tu reagiria?

-E eu lá vou saber. Bah, não dou motivo para desconfiarem de mim. Ninguém me jurou de morte ainda!

-Vá te deitar! Vá que tu de nada sabe!

-Mulher! Dona Luna! A conversa não acabou! Tu não vai dormir aí, se é o que tu pensa.

-Já vou, já vou.

-Tu que não me devolva o Smith até meio-dia para ver só! Meio-dia e dez eu faço queixa de ti na polícia!

-Vai! Tu vai é pra puta que te pariu! Eu não peguei Smith nenhum. E se eu o achar eu te entocho ele! Vá te catar!

Ao meio-dia do dia seguinte, nem o Smith apareceu, nem a queixa foi registrada. Disse na TV que a família do abastado advogado Perez foi encontrada toda morta. Não há ainda indícios de roubo. Suspeitam de assassinato seguido de suicídio. A polícia está ainda averiguando o caso.

Contos da cia 3

Stênio participa de um concurso para professor universitário

Cidade do interior, verão, 36°C. Stênio acorda, puxa o relógio de passeio de sua esposa e verifica são seis horas ainda, durmo mais um pouco, às sete me levanto. Stênio, pela sua ansiedade, acorda novamente sem despertador são sete! Arruma-se e vai pelas ruas da cidadezinha até a universidade, onde participará de um concurso para professor efetivo.

Que sol forte, pensa, são oito e poucas, não deveria ainda estar assim. Preciso ver as horas... Nenhum comércio está aberto, não passa por mim nenhuma pessoa com relógio... Chega à universidade, mas não há ninguém na portaria para informá-lo das horas e do possível local onde ele encontraria as pessoas.
Onde terá ido o pessoal? A sala é essa, conforme o edital... Stênio anda por todo o prédio, sente-se estranho, quer ir embora, sente-se como que dentro de um conto fantástico, onde tudo pode acontecer e esse tudo só pode ser o do pior possível. A saída? Me perdi, agora se deu a confusão... Acho que vim daquele corredor... Stênio dobra o corredor à sua direita, quer achar a saída e ir embora. Há algo que o diz: Se manda, rapaz! Enquanto hesita em apertar o botão do elevador, uma porta à suas costas se abre.
-Ohôhô, grande Stênio, você está atrasado.... Vamos ver o que podemos fazer, vamos à sala da prova, os pontos para as provas dissertativa e expositiva já foram sorteados. Falou um dos professores-avaliadores que, por sinal, conhecia Stênio de longas datas.
Meu Deus, e agora? Não posso mais fugir! E a banca? São todos conhecidos meus! Stênio não sentia mais nem a própria alma. Só podia pensar em que estava fazendo ali e a necessidade de fugir. Na verdade, Stênio já não sabia mais porque queria fugir, apenas queria.
-O nosso amigo chegou atrasado, mas como ainda não divulgamos os pontos, se ninguém da turma se opuser, ele poderá participar.
Vários não, não, por mim, ele pode participar foram murmurados e Stênio não pôde recusar a participação.
Todos estão sentados em seus lugares à espera da divulgação dos pontos. Os participantes têm direito à consulta às suas anotações referente ao assunto pelos primeiros trinta minutos. Por um momento, Stênio achou-se aliviado, mas suas mãos suavam frio como nunca antes, e o seu coração estava acelerado.
Meu Deus, dos dez prováveis pontos dessa prova, estudei nove. Os pontos foram finalmente divulgados: Análise do xxxxx; prova expositiva: Análise do xxxxx.
Stênio perde a consciência por alguns segundos, pensa em desmaiar, olha para o quadro várias vezes, tenta pensar, sua mente se confunde. Stênio pega os papéis que possui, tenta fingir lê-los, não sabe o que fazer. Meu Deus, por que age assim comigo? A probabilidade de cair o mesmo tema nos dois sorteios é ínfima, e justo o único que não pude estudar!
Stênio sente uma força sobre a sua cabeça e um filme vem à sua mente: a falta do livro que emprestara há um ano e meio ao amigo de sua esposa que, por ventura ou castigo, era um dos participantes daquele concurso; o quebrar do carro no caminho da viagem, o decorrente atraso da viagem em doze horas; a dificuldade em se instalar; o descarregar da bateria do celular (essa durava 15 dias, logo ontem descarregou); o relógio que sua esposa usava ser o de passeio, logo estava atrasado em uma hora (o horário de verão já havia começado há três dias); o decorrente atraso de uma hora na chegada à universidade; a sensação de terror vivida até ali... Deus o avisara de várias formas que não adiantaria de nada insistir naquilo. Realmente, a minha vida está predestina ao capino do sítio improdutivo que herdei e a tolerância com dos porres da minha mulher!
O aspirante a professor guardou suas coisas, levantou-se e dirigiu-se à mesa.
-Aqui está!
-Como assim, você vai desistir?
-Vou, porque pensando bem...
Stênio soltou um sorriso amarelo e continuou
-Tenho uma bolsa de pós-doc na Argentina já aprovada, e eu queria fazer essa prova por experiência mesmo, mas acho melhor eu ir andando.
Stênio saiu só aos ossos. Não conseguia pensar. Não conseguia enxergar ou ouvir. Saiu da universidade e chegou ao hotel sem saber como, pareceu mágica. Pegou suas coisas, deixou sua esposa dormindo embriagada no hotel, pagou a conta e se mandou para nunca mais voltar à vida que levara até ali.

Disse um amigo meu que a esposa de Stênio se suicidou ao ver que o marido fugira, e que o próprio se tornou hippie e vive hoje de artesanato e erva na Bahia em alguma praia e, de vez em quando, vai aos Xangôs em busca de salvação.

quinta-feira, agosto 16, 2007

A vida é essa

Com pressa
nada cessa.
De repente,
vale uma bela compressa.

sexta-feira, agosto 10, 2007

Histórias da Sereia

In: pires.blig.ig.com.br/


Os encantos do mar

Seis horas da manhã. Nem um minuto a mais, nem um a menos. Quando percebi, eu estava sentada sobre a cama olhando, pela janela, o movimento que não existia na rua. Uma vontade de chimarrão me acometeu. Apesar do friozinho que despertava a preguiça em mim, levantei-me, preparei a cuia, a erva, aqueci a água... Mais uns minutos, o chimarrão estava pronto. Resolvi que o tomaria na sacada. Algo me fizera despertar, abrir as cortinas e olhar para a rua, como se algo ou alguém fosse chegar, por isso, resolvi que iria ver o que tanto me chamava à rua naquele horário.
O dia estava se descortinando, o sol ia se fortalecendo, as pessoas começam a aparecer. Ainda eu pensava o que teria me feito desejar ver a rua naquela hora. Afinal, era segunda-feira. Apenas eu, uma pessoa a espera de uma ligação para atender a uma vaga de emprego, estaria com aquela manhã livre para olhar a rua.
O dia estava avançando cada vez mais, eu já estava perdendo a vontade de ali permanecer... Resolvi que pegaria o romance que eu estava lendo e ali daria continuidade. Assim que entrei na sala, o telefone tocou. Atendi-o, mas a ligação caiu. Irritei-me, pois a cada vez que o telefone tocava, uma esperança despertava no meu peito. Tomei o romance em mãos, voltei à sacada, enchi a cuia novamente com a água quente e dei início aos processos, o matear e o ler.
Certa altura da manhã, cansei-me do livro e a água quente acabara. Resolvi que já era hora de preparar algo para almoçar. Abri a geladeira, não havia nada que me despertasse o apetite. Arrumei-me então e me dirigi ao feirão.
A caminho, pelas ruas que passava, percebi que o dia estava diferente. A tonalidade das cores era forte e essas se tornaram mais vivas. Havia um capricho especial da natureza. O vento soprava delicadamente e o sol apenas iluminava, neste dia, ele não queimava nada por onde permeava.
Uma alegria estava se instaurando no meu peito. Não era qualquer alegria. Era uma alegria que eu jamais sentira na vida. Como se Deus estivesse me abraçando e me dizendo que um verdadeiro milagre aconteceria. Não. Definitivamente. Era algo diferente disso. Blasfêmia, ou não, digo que a alegria que me invadia era maior que Deus. Era uma alegria que não se deve ser de costume acontecer na Terra.
De repente, um desejo me invadiu a mente: ir à praia. Não queria ir mais ao feirão, de repente, nem quisesse mais almoçar. Tomei o rumo ao contrário. Dirigi-me à estrada da praia.
Praia linda. O mar estava suave. A brisa que dele soprava parecia um encantamento. Quando dei por conta, estava descalça, tinha amontoado as sapatilhas junto à bolsa e já estava com a água pelos joelhos. Ali permaneci sentindo a brisa me envolver.
Escutei alguém me chamar. Não sei quanto tempo ali estava parada. Não me chamavam pelo nome, apenas me chamavam. Sabia que era a mim que chamavam, pois a praia estava deserta. Olhei em volta nada vi. Voltei os olhos para o horizonte azulado e avistei uma pequena embarcação de pescadores. Como que se o encantamento das brisas passasse, resolvi voltar à areia e pegar minhas coisas.
Quando quase pronta para retomar os planos de ir ao feirão, da embarcação que havia já chego à praia, a voz de homem, como aquela que havia pensado ouvir antes, me chamou por três vezes. Olhei para a embarcação e de lá esse homem me acenava.
Aproximei-me e dele ganhei um pacote de pescadas. Eu nada entendi, e para não me deixar sem jeito o rapaz me explicou que era tradição ao voltar da pesca oferecer como presente uma porção do arrecadado à primeira pessoa que eles avistassem de alto mar. Caso não houvesse ninguém na praia, seria um mau presságio para a próxima saída para o mar. Aceitei, agradeci. Mas algo a mais acontecia naquele momento.
O rapaz, depois de me entregar o pacote rusticamente feito com os peixes, segurou-me pelo braço quando eu ia me virando para retomar meus caminhos. Os olhares se cruzaram e a brisa voltou a oferecer o seu encantamento.


domingo, julho 29, 2007

Contos da cia 2

Paraguai vai preso

Paraguai, recém chegado na cidade grande, chega em casa do trabalho.

-Lola! Lola!
...
- E agora? Tô sem a chave do portão...

Pluft!

­­-Pelo menos, a chave da casa está aqui, bem debaixo do tapete...

Pampampam Poum

­­-É a polícia! Mão pra cabeça!
-Que houve, moço?
-Você está preso em flagrante! Invasão à residência e tentativa de assalto!
-Não! Eu moro aqui!
-Prova!
-Meu Deus!
-O senhor foi visto pulando o muro!
-É que esqueci a chave do portão. Chamei minha esposa e ela não tava, aí tive que pular, né?
-Prova que o senhor mora aqui!
-Não posso!Posso! Tão vendo aquela casa lá! É a do rapaz que me alugou essa casa! Perguntem pra ele!

-Não tem ninguém lá! O senhor vai preso!
-Preso?Eu não fiz nada!
-Preso, pois não pode provar que mora aqui. O senhor foi flagrado pulando o muro. Temos que te levar!

Dias depois...

-Stênio, o Paraguai está sumido... Ele não veio nesse fim de semana para casa... Fui, hoje cedo, lá no trabalho dele, lá também ele tá sumido...
-Eita! O que será que aconteceu com ele? Vamos lá mais tarde de novo.

-Quero falar com o delegado!
-Cala a boca aí!
-Tô aqui há dias! Fui preso injustamente e dentro da minha casa!
-Cala a boca aí!
-Moço, pelo amor que o senhor tem à sua mãe! Deixe-me falar com o delegado!
-Mas que merda é essa de enfiar minha mãe em tudo! Vocês ficam apelando por qualquer coisa... Dessa vez vai, na próxima... Dou-te com os dois pés nos peitos.

-O que é que você manda!
-Doutor, por favor, me deixa sair daqui! Me prenderam sem motivo, só porque não pude provar que eu moro naquela casa... Não tinha ninguém pra me ajudar naquela hora... Minha mulher deve estar preocupada, vou acabar perdendo o emprego...
-Quer dar um telefonema?
-Quero.
-Carcereiro, leve o homem até a minha sala.

-E então, não vai ligar?
-Não sei pra onde... Não sei o telefone de ninguém... Doutor, cheguei essa semana aí, só aluguei a casa pra minha esposa morar e comecei a trabalhar... não conheço muita gente...
-Assim fica difícil, né?

-Vou te dar uma chance, mas será a única: me dá o seu endereço que aí eu vou lá averiguar. Se a sua esposa confirmar o que você me diz, eu volto aqui e deixo você sair. Se não, aí eu lhe transfiro você sabe pra onde!
-Está bem, Doutor, muito obrigado. Que Deus lhe pague!

-Paraguai!
-Fui à sua casa. Não sei se você vai gostar de saber o que há lá fora...
-Fale homem! Aconteceu alguma coisa com a minha Lola?
-Pois é...
-Não sei como dizer...
-Fale homem, fale que sou macho!
-A sua esposa...
-Ande!
-Então, ela disse que faz dez dias que você está longe do emprego e de casa, acha que você fugiu com a vizinha...
-Ah meu Deus!
-Aí...
-Fale homem!
-Aí... ela...
-Ande homem, veja meu coração!
-Aí, como ela foi uns cinco dias lá no seu serviço... Sabe aquele chileno?
-Sei!
-Então, a Lola, o Chileno...
-Fala!
-Então, a Lola chamou o Chileno pra morar com ela...

Pumba!

-Paraguai!
-...
-Paraguai!
-...
-Acorda cabra-macho!
-Ah? O que foi? Sonhei que o doutor me dizia que minha esposa tinha arrumado outro...
-Acorda que não foi um sonho.
-Ah que bom... Ah? Não foi um sonho?
-Não, acabei de lhe contar tudo o que vi na sua casa, e você não agüentou...
-Doutor! -Calma, rapaz!
-Você também perdeu o emprego!
-Ah?
-Acho melhor você ir ficando por aqui... Ao menos, aqui não vai faltar o teto e nem a comida.
Pumba!

Contos da cia

Hora de dormir

Stênio e sua mulher estão prontos para dormir, quando Stênio inicia uma conversa.

-Me ocorreu um fato!
-Que fato, homem?
-Sabe, tô pensando em denunciar aqueles filhos-da-mãe por terem me prendido naquele dia.
-Mas você vai denunciar o que?
-Eles me algemaram só porque eu arranhei o carro daquele homem, depois, me tomaram a carteira de motorista e me deixaram preso por cinco dias.
-Tá que tudo isso foi injusto, se bem que poderia ter sido justo...
-Como assim, tá louca?!
-Ah, e se não tivesse sido só um arranhão? E se você estivesse em alta velocidade e...
-Tá, mas não foi o caso. Eles me usaram para dar exemplo ao povão.
-E daí? O que importa é que você e o carro estão aqui. Tudo já foi resolvido.
-Eu não aceito sair dessa assim... E os danos morais e materiais que sofri com tudo isso?
-Mas você não disse que foi uma terapia aqueles cinco dias na cadeia, que você comeu melhor do que nunca e fez amigos para sempre?
-Tá, e a vergonha de ter saído da vila algemado e ter sido exposto aquelas malucas das minhas ex-mulheres, de ter chego lá no marmitão algemado, sujo, malacabado? Pior mesmo foi ter visto na cara da maluca-mor a satisfação de me ver naquela situação.
-Tá... E o que você quer fazer? Ir à corregedoria e fazer um boletim de ocorrência denunciando abusos da polícia? Vai onde para processar o juiz que te indeferiu a soltura, no primeiro dia, e ordenou reclusão em regime fechado até o dia do julgamento? E depois? Já pensou nas conseqüências?
-Ah, mas esse mundo precisa de justiça. O mundo está como está porque as pessoas não fazem suas denuncias de abuso de poder e tudo se dará sempre como se deu comigo: Cidadãos honestos sendo presos e expostos ao ridículo por conta de eventualidades. Eu não matei ninguém! Stênio acende um cigarro. E mesmo que tivesse matado, se foi um acidente...
-Tá, você já pensou que a polícia e o juiz que estão envolvidos na questão poderiam querer se vingar de você?
-E eu? Não tenho o direito de me vingar deles?
-Ter, você tem. Mas quem é você?
-Como assim?
-Você é algum empresário de renome? É político quente? É parente de algum magnata ou mafioso?
-Não...
-Está aí! Você é um pobre doutor, mero pesquisador, dono de um importado e de um terno. Só isso, mais nada! Que poder você tem? Nenhum!
-É... Você tem raz...
-Pois é. Daí, qualquer dia você desaparece. Passa algum tempo, você aparece morto no Pantanal, e o carro jogado num beco do Rio Tavares. E aí? Terá sido um seqüestro, como os de São Paulo?
-É né?!
-Ou pior, lembra do caso do PC Farias e sua namorada? Assassinato seguido de suicídio. Um crime passional. Você acredita?
-Escuta!
-O que? Ahhh! Lá fora!
-Alguém abriu o portão?
-Abriu.
-Liga pra polícia!
-A linha...

quarta-feira, abril 04, 2007

escrevendo


Amizade
Amizade é coisa das idades.
Só crianças e adolescentes a têm?
Não, somente os velhos a detêm.
É dos velhos a amizade em que cidade?
Na cidade das eternidades,
Onde tudo se faz em velhas irmandades.


Mocidade
É estar numa grande cidade
Ter esta nossa idade
É tanta beldade
Que até promove maldade
Ah, que saudade.
À uma senhorinha

Dolores
As flores inspiraram as cores
Afastaram as dores
Iluminaram os horrores
Pois afastaram os bolores
Assim Deus fez as Dolores.

No barco da vida: Mu(n)danças e Correntezas

in Praia da Luz
Mu(n)danças

De todas as vezes foram as mesmas vozes:
Eram as vozes de Aruanda.
A Terra que nos anda, em que tudo se adianta.
Aruanda se descobriu quando a banda se viu:
O tambor despertou o amor, despachou a dor.
Foi então que se anunciou:
O coração da gente bate no ritmo do tambor
Se há amor, em Aruanda, haverá contentador.
Depois que à banda se vivenciou
Não se passa mais bamba
Pois já se está à dança.
-----------------------------------------------------------
Correntezas

Tenho certezas?
Tenho tristezas.
Olha as estrelas!Quantas são as belezas.
Ah, só podia mesmo ser as correntezas.

Despedidas, Desilusão e Joguete


Despedidas
Sem adeus, pois não há Deus!
Nessas horas, só há os Eus
Os erros meus.

Pedidas foram as brigas cruas
Impedidas, as pazes nuas
Inventadas, então, as rixas suas

Hoje, pouco se lixas à alma minha as tuas
e às tuas, a minha se faz crua.


Desilusão
Amores não existem sem dores
Quantos horrores!
Mas veja as suas cores:
Estão todas podres!

Joguete
Deus deu a vida
Deu a vida, Deus!
Acabou-se a minha comida
E um amor fez partida,
Ontem, fui despedida.
E amanhã?
Qual será a Sua pedida?
Como será a minha vida?

Orientador

Uma não-homenagem àqueles que
são irresponsáveis com as vidas alheias.
Transformar a dor em amor seria, talvez, a sua missão,
Se não fosse pelo seu temor de parir um melhor pesquisador!
Bem maior que o temor do seu peito,
É o seu invejar saber tudo que os menores vêm a saber,
E, por isso, nenhum dos pormenores você quer perder!
Bem menor que o amor à sua profissão, é o seu caráter,
Que o faz aspirar à dominação de todo um quilate.
Com o seu Ego inflado, com o seu orgulho inflamado
E por ser só um apaixonado, você será sempre um desgraçado!
Pois Deus não perdoa quem torna um menor avacalhado.

sábado, março 24, 2007

Contos do Bar Universitário I e II


Bar universitário I

-Cara, nem tem conto... Perdi o emprego semana passada. Hoje, perdi o namorado!
-Ah, e eu... Além de emprego e namorada, fui despejado! Ah, já ia me esquecendo, também fui assaltado no dia em que fui receber a primeira parcela do seguro-desemprego. Estava com todo o dinheiro na carteira, veio um maluco e... Só senti que perdia a carteira...
-Meu, cê nem sabe... Com tanto tumulto de lá pra cá, me esqueci.
-De quê?
-Ah? Esqueci.
-Esqueceu de quê?
-Até do que esqueci.

Bar universitário II

-Mulher! Quanto tempo!
-Pois é rapaz! Não te vejo há mais de tempo no campus... Por onde você anda?
-Ah... Façamos assim, vamos tomar umas cachaças e aí te conto.
-Garçom! Manda aquela, a da casa, mas da ouro, heim!
-Manda aqui uma da prata.
-E então, o que é que manda?
-Manda que fiquei seis meses sem sair de casa. Depois fiquei outros dois preso.
-Por que tanta violência? Preso? O que você aprontou?
-Porque eu havia me esquecido do que eu fazia, aí fiquei em casa até lembrar.
-Credo. Sabe que eu andei assim... Na verdade ainda ando. Assim, esquecida de tudo. Avoada...
-Pois é. Tudo começou quando o Bortoni marcou uma prova. Aí fui pra casa. Tinha decidido que ia dormir primeiro e depois estudar. Dormi profundamente. Sonhei com uns caras estranhos, eu tava armado e matando um bando. Depois, um cachorro se agarrou no meu braço direito. Fingi que era policial e saí pelo bando da polícia. Quando passei por quase todos, soltei o cachorro e saí correndo. Acordei com o coração aos pulos.
-Ah, e daí?
-Daí que acordei e o sonho tava misturado na vida real. Comecei a achar que era guerrilheiro. De repente, dormi de novo. Sonhei com um assalto. Depois sonhei que estava num galpão fechado com outros caras. Tinha um chefe e esse me disse para ficar esperando o contato para agir. Acordei e fiquei esperando o contato.
-Como assim? Você dorme, sonha, acorda e acha que tudo foi real?
-Pois é. Um dia, já tinha quatro meses que eu não saia de casa. Pedia comida pronta pelo telefone. Ah, detalhe: eu mandava por na conta do Merluzzi. Eu disse que esse cara era o meu patrão e que depois ele ia entrar em contato com o restaurante e pagar a conta.
-Vixi. E eles acreditaram assim, na boa?
-Pois é, acreditaram e mandaram o rango por quatro meses. Mas, aí, como o Merluzzi não aparecia com o dinheiro, o restaurante começou a desconfiar. Acharam melhor entrar em contato com o proprietário lá de casa. Esse, coitado! Já havia gasto os três depósitos-fiança e não sabia o que fazer, pois para o quarto mês já não tinha mais dinheiro. Antes de ele usar os depósitos, ele veio falar comigo, eu disse pra ele usá-los que depois a gente acertava. Eu não podia sair de casa, tinha que esperar o contato do patrão para saber o que fazer.
-E o que ele fez depois que acabou o dinheiro?
-Ele me ligou. Falei a mesma coisa que ao restaurante: o Merluzzi vai pagar... Vai segurando as pontas aí. Meu Deus! Um e outro não sabiam quem era o tal Merluzzi... Eu não arredava o pé de casa nem para pegar a marmita do restaurante, eu não podia ser visto por estranhos...
-E como o cara te entregava a marmita?
-Fiz uma passagem na porta do apartamento. Igual aquelas de motel, sabe?
-Sei... E daí? Ficaram lá esperando o tal Merluzzi?
-Nada. Resolveram investigar, sabe como é esse povo... Estudante que mora sozinho pode ficar doido...
-Chamaram a polícia?
-Nada, que mané polícia o quê! Chamaram o hospício.
-Meu Deus! E o que houve?
-Ha! Fui levado em camisa de força. Tomei choque na cabeça um mês, depois só bagas e terapia.
-Meu Deus! Tudo isso por causa da prova do Bortoni?
-Então, o psiquiatra disse que não foi a prova que causou a esquizofrenia.
-E foi o que, então?
-Foi um desejo que tive um dia.
-Um desejo?
-É. Sabe aquelas noites que a gente sai da faculdade cansado, estressado, meio sem saber o que quer, se quer comer, comer o que, se quer dormir ou ir para um bar...
-Ah?
-O psiquiatra disse que eu devo ter desejado mudar de vida, ser um guerrilheiro, alguma coisa assim. E como o estresse foi tanto que esse desejo virou sonho e depois fantasia, pois se misturou ao meu senso de realidade.
-Mas, e agora, você está bem?
-Nada! Estou trabalhando em dois empregos, estudando à noite. No final de semana, tenho feito um bico de guardador de carros no centro.
-Nossa, para que tanta violência?
-Tenho que pagar R$1.600 ao restaurante, mais R$1000 ao dono do apartamento, mais R$2500 da portinha de motel e mais R$5300 ao hospício, ou seja, estou devendo mais de R$10000! Fora o que devo à companhia telefônica e à de luz. Ah, como eu ia me esquecendo: o condomínio, também tô devendo! Essas dívidas ficaram em torno de R$700.
-Meu Deus! Mas com tanta dívida e com tanto estresse... Garçom desce uma prata, agora, pra mim.
-Ah, vou de ouro, por favor.
-Como ia dizendo, você pode pirar outra vez...
-Pois é... Foi o que eu disse ao psiquiatra. Eu quis um atestado de louco para apresentar ao povo que tô devendo e assim ficar isento das dívidas, mas sabe como é... O Estado está com a verba de sustento de inválidos quase invalidada...
-Como sempre: nunca tem verba!
-E aí, tenho que trabalhar, né?
-Mas, me diga, você é guarda-carros e o que mais?
-Ah? Eu guarda-carros? Tá maluca? Eu nem guardo a mim mesmo, vou guardar carros?
-Mas você disse que guardava os carros no centro da cidade?
-Nada disso.
-E tem trabalhado em que, então?
-Eu trabalhado? Tá louca. Tenho um pai empresário para quê? Para me sustentar é claro!
-Mas...
-Xiiii... Mulher, você tá piradinha, heim? Acho melhor você parar de beber e ir embora? Onde você mora?
-Moro ainda lá no Pantanal. Você sabe onde moro, você já foi lá, lembra?
-Eu não. Tô te conhecendo hoje! Credo, tem cada louco por aí...

Bar universitário III

-Oi! Acho que te conheço...
-É, você não me é estranha...
-Acho que nos vimos no almoço de hoje, certo? Almoçamos na mesma mesa?
-Não, acho que não... Não mesmo. Hoje almocei em casa.
-Então, talvez, tenhamos nos visto no ônibus...
-Não, hoje eu peguei uma carona com a minha vizinha...
-Já sei! No Hospital Universitário!
-Isso! Pode ser!
-Você... não sei...
-O que?
-É que eu estava na fila do Dr. Otto...
-O psiquiatra?
-É...
-Isso! Foi lá mesmo!
-Você também é paciente dele?
-Não.
-Não? Menos mal. E então, o que fazia lá?
-Sou paciente da Dra. Claúdia.
-Dra. Claúdia?
-A psicoterapeuta.

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Rolando os Dados

by Hermelindo

Ações de dados


Serão os fatos meus, seus, de Deus?
Quem sabe, são fatos vindo de dados
Rolados por dedos entremeados
De um alado cavalo (al)armado.
Fatos pedem. Atos podem.
Rolam dados (in)versos,
Alam trocadas palavras troteadas,
Em úmidas terras saqueadas que
Pedem ser lavradas com emoções,
Pondo (in)versões e más-criações,
Resultando várias invenções.
Fortes ventos fazem o pólem aterrisar
Nas úmidas e únicas terras desalmadas
Para que nunca cesse o desbemolizar
Pelo rolar de dados pelos emocionados
almados com corações desolados.




Ações de dados II

O imaginário é um mundo paralelo
Com o qual amizade selo
Onde meus dedos relam em dados,
Revelando, em múltiplas faces,
Apaixonados segredos.
Segredos e invenções,
Às vezes, fáceis provocações,
Das frágeis sensações.
Tudo está no páreo,
Em azulado céu estanteado,
Tudo fica organizado:
Fatos. Atos. Tatos.
Do paralelo mundo,
Desbemolizados do fel,
Tudo é materializado.
Invenções e más-criações,
São apenas inspirações
Dos humanos corações.
Que em breves canções,
Pairam em nossas escrevinhações.

Carnaval



Tal se merece

Carnaval, tudo tem o aval!
Com sal tudo ganha gosto:
Do que é sem rosto ao que é tosco.
Muita festa, tudo se atesta,
De graça, nem injeção na testa!
Na folia, muita guria não se esquece:
Depois do sal tudo perece, por isso,
Nem tchau carece.
Nada permanece, pois tudo padece,
Quando nas cinzas amanhece.
O povo faz grau o ano todo
Só para ter sal no Carnaval,
Quanto mais sal mais gosto.
Que tosco!
Eis o motivo da campanha salarial.

sábado, fevereiro 17, 2007

Pedacinhos do pensamento II

Meu coração partiu, pois amor pariu.
Fugi porque tudo eu previ...
Um dia tentei, mas hesitei.
Assim, insisti, e, agora, tudo eu vi:
De tanta falta de hora, cansei,
O parido agora já se fez partido.
Tudo só podia ir mesmo fora!
Era apenas mais um caso vertido.

Pedacinhos do pensamento


Ontem, briguei com meu amor.
Hoje, acordei sem calor.
Desse horror, eu tudo já sei.
Falei além da conta,
Porque ouvi de ficar tonta.
Sem cor agora estou
Imersa numa tremenda dor.
___________________________

Dor de amor
Faz tudo ficar sem cor
Estarrece até que adoece
Na prece de que tudo logo cesse

terça-feira, janeiro 23, 2007

Uma homenagem à minha terra


HOMENAGEM À SANTA SAMPA,
A NOSSA PAULICÉIA DE MÁRIO

São Paulo, minha amada terra onde tudo tem,
nunca o tempo pára a madrugada nada encerra
e de nada fico sem.

Saúdo esta cidade todas as noites:
Minha alma a flana em seus miúdos
e se encanta com seus flamejares
criados por seus sisudos sem calma
Quero estar em sua velocidade!

De polifonia estonteante
tem-se a berrante sincronia:
Carros velozes e muitas vozes
de muitos errantes e amantes.

Nos trens,
os viajantes se esquecem
de tão apressados
de serem também passantes

para fotografar as colossais imagens
do inconfundível cotidiano paulistano,
onde sempre se descobre que nada é apenas à esmo,
mas, em suas mentes, só há o tudo no mesmo

Suas luzes, seus sons e odores
tudo conta a minha história!
Cidade de todos os tons
de amores e dores
Cidade de tudo e de todos!

A cidade sempre foi de pressa e promessa
E por isso nunca se cessa
A festa de tudo se querer fotografar
E com tudo e com todos fadar.

Olhar essa cidade, sem pressa, em sua pressa
É sempre uma promessa daqueles que passam...
É uma grande pena
perder a Cena da velocidade!

Mas, depois que de lá saem
só sonham em lá voltar
para tudo com suas solas saudar,
pois mãe como esta cidade,
nenhuma outra a bondade tem de o ser.
Sampa está a meio caminho do mundo,
tem de tudo e de todos, liga-se a tudo e a todos.
E só em Sampa se tem amor, se tem vida!
Suas gigantes feiras, seus camelôs
seus candomblés e catedrais
centrinhos e centrões...
Calçadões de verdade
só mesmo em Sampa!

O sábado à noite com sua pizza e vinho
O dia de feira com pastel e caldo de cana
E berram os feirantes:
Moça bonita não paga, mas também não leva!
E aí freguesa, o que vai ser? Leve quatro pague três!
O dia de domingo com as massas que bóiam nos molhos
Só em Sampa isso tudo tem

Seu centro intelectual
com megas livrarias e teatros
cem exposições e zilhões de mostras
Todos têm Trabalho!
Suas mil periferias encantadas com
pagode e churrasco de domingo
regados à cerveja na laje
Todos merecem descanso!

São nas lajes que as dores são esquecidas,
e são nas mostras que as almas são enriquecidas.

Que saudade de Sampa
É uma pena eu estar perdendo suas velozes
Cenas de seda que se rasgam nas suas atrozes vozes

Aqui tem mares, tem sóis, chuvas
E ventos uivantes sempre
mas não há muitos paulistanos...
É uma pena, pois por aqui não há muitas cenas
que queiram ser fotografadas pela mente
e, assim, ficam em belezas afogadas

Somente os filhos de Sampa
sabem viver, mesmo com as nossas horas do ter
Assim, aqui nada de graça tem
ninguém é de verdade
não há alegria nem dor
aqui tudo é morno
tudo é transformado em caos
ninguém sabe o que é o caos por aqui
não há caos! Só casos.

Em Sampa, há casos e caos. Erótico caos!
Aqui não se tem nada de erótico
Só se tem de neurótico.

Sampa, nada mais vivo, nada mais brilhante
que essa cidade errante, berrante
e amante!
Ah, como tenho saudades da velocidade
encantadora da alma
Salve a Santa Paulicéia saracuteante!

Sambinha

Samba para os meus

Omio dô, omio dô
Minha mãe é Iemanjá
E uma boa vida Ela vai me arranjar

O que bambo, o que bambo
Meu pai é Odé
E Nele tenho muita fé

Eu eu, eu eu
Oçanhe é meu protetor também
E meus passos ele vai guiar e
de toda dor me afastar.

Iê iêu, iê iêu
Oxum é da dinda
Que vai ainda muita fertilidade
me fazer encontrar

Meus protetores,
Neles tenho fé.
Agradeço a eles pelos caminhos
Que não trilho a pé.