sábado, setembro 23, 2006

Você no conto

Imagine uma situação assim: Os anos se passam e você ficará mais estarrecido do que um dia estarreceu

De repente, numa manhã ensolarada de domingo, você acorda, toma o café da manhã, resolve arrumar-se e dar um passeio. Chega ao portão de casa, abre-o, sai calmamente, feliz, cumprimenta os vizinhos todos que encontra ao longo da rua, até que chega à esquina e, um susto, você dá de frente com uma personagem que lhe remete às mais sórdidas lembranças do passado. E como se uma tempestade acabasse com a deliciosa manhã de sol, a sua alma parece do corpo fugir...
Um “oi, tudo bom, quanto tempo” sai meio amargo da sua boca, e então você recebe um forte abraço e um beijo caloroso seguidos de “quantas saudades, vinha lhe visitar, você estava de saída?” Você fica completamente passada, e diz que simplesmente estava indo buscar o pão... E, sem ter qualquer outro jeito para lidar com o inesperado e indesejado encontro, você convida a pessoa a lhe acompanhar até a padaria; e, lá, você compra o melhor pão, o melhor bolo, o melhor leite... Uma irresistível compulsão lhe bemoliza a mente e lhe deixa sem a mínima noção do que está acontecendo.
Então, vocês caminham meio vagarosamente até a sua casa, e a pessoa lhe fala de todo o acontecido durante todo o tempo que vocês não se viram... A pessoa narra-lhe quatro anos em quinze minutos, sem ao menos dar-lhe a chance de organizar fatos e pessoas. Finalmente, chegam à sua casa, a pessoa admira-se da sua compulsão pela ordem dos móveis e dos objetos, e começa a falar sobre sua casa dando um tom de “tudo continua o mesmo desde que sai há anos”.
A mesa para o café é posta, você começa, sem saber o porquê, a compartilhar a refeição matutina; a pessoa inicia, então, uma conversa e, assim, interroga-lhe sobre a sua vida. A sua alma começa a querer fugir de novo do seu corpo, dessa vez, com muito mais desejo. Você não sabe ao certo se quer o não falar de tal coisa, mas quando se percebe, já falou; quer falar de outras coisas, mas não tem a chance e acaba por esquecer. Aí você passa a ter a sensação de que a sua vida é medíocre, não, a de que você é medíocre; afinal, nem mesmo consegue controlar uma situação inesperada.
Que situação desagradável! Você nunca iria imaginar que em uma bela manhã ensolarada, em um exato dia que você acordou com a maior disposição para caminhar e ver as ruas, o mar, as pessoas, de repente comprar um jornaleco para ler à beira mar num café popular; você encontra justamente uma pessoa que você gostaria de nunca mais ver! A pessoa que, sem mais nem menos, retorna à sua vida, sem ao menos ter tido o cuidado de telefonar, narra-lhe a vida sem o menor receio e ainda lhe impõe lembranças sórdidas, as quais você gostaria de nunca mais lembrar; afinal, alguém que sabe ser uma presença desprezível e, mesmo assim, faz-se presente e, pior, sem aviso prévio, não tem o mínimo de bom senso.
A pessoa fica o tempo inteiro falando de si, de pessoas que você não conhece, interroga-lhe incessantemente sobre outras pessoas, muitas das quais você nem mesmo se lembra, até que lhe faz rememorar os velhos tempos ao lado dela... Você começa a sentir a sua alma sair como que de uma só vez... Pára tudo e ascende um cigarro, toma o café todo de um só gole, traga de novo, bate a cinza, sente-se enjoada e apaga o cigarro recém ascendido... O que fazer? Como que num estalo, você tem a sensação de que nada mudou, de que aquela pessoa nunca saiu da sua casa... E que você continua a mesma, como a mesma organização dos móveis e objetos...
Em minutos, a sua alma deixa de querer sair do seu corpo, mas o seu corpo quer colar-se ao outro corpo, você não sabe o que fazer, não sabe o que quer; o seu corpo não lhe o obedece, a sua alma não lhe obedece, talvez, agora você realmente quisesse que ela fugisse de seu corpo, e que esse caísse desfalecido, mas ambos não lhe obedecem. A sua cabeça gira, você está completamente bemol. Passam-se minutos de puro silêncio, a hora do almoço se aproxima, minutos a mais, o seu corpo se encontra colado ao outro corpo em sua própria cama, em seus límpidos lençóis... Horas aí se passam, há apenas o sentimento de tempos atrás, o sentimento enlouquecedor da saudade, não há uma só palavra. Um momento chega, o fim, a satisfação, algo deve ser dito, mas não há algo... Horas se passam e você nem mesmo sabe o que pensar. Você está completamente bemol e surreal.
Um barulho esquisito interrompe o duro silêncio: o da fome. As barrigas fizeram o favor de forçar uma conversa, você olha para a pessoa que solta uma baforada pra cima e lhe olha meio que de ladinho e sorri; e então, você cria coragem e diz “precisamos almoçar, são quase cinco da tarde”, a pessoa balança a cabeça em tom afirmativo, apaga o cigarro e diz que precisa ir.
E assim, sem mais nem menos, o seu maravilhoso dia que já havia se transformado em um dia bemolizado, você fica estarrecida ao máximo, já que foi submetida a mais essa situação sórdida, depois de anos, sendo que a separação de vocês foi a separação mais estúpida da história da humanidade, você se levanta e dá, com toda a força de mulher, um tapa, um fortíssimo tapa na face estúpida do cretino que acha que pode brincar com a sua rotina. Dispara como louca a falar todas as coisas que deveria ter dito anos atrás e a estapear o cretino, deixando nele marcas de suas unhas, de seus anéis... A cada marca, uma satisfação. A pessoa consegue lhe segurar pelos punhos, olha-lhe no fundo de seus olhos, e lhe pede desculpas pelo tempo que ficou longe, mas, você reage com a força da raiva, do ódio, da indignação do dia de sol perdido, solta-se e o estapeia interrompendo-lhe a fala. Larga o cretino, corre e lhe pega as roupas, abre a porta, joga tudo pelo corredor e o manda embora. A pessoa, não sabe o que fazer, olha-lhe e diz que não esperava ver tanta fúria vinda de você, você nada diz, apenas o empurra para fora e fecha a porta. Por fim, a pessoa sai da sua casa, feito um bicho humilhado...
Lá fora, a pessoa sai pensando que fez tudo errado de novo; que ao invés de reparar os erros do passado, acabou por cometer outros novos, e que agora, dificilmente teria outra chance como a que teve... Enquanto lá dentro você se tortura por ter-se deixado levar pela bemolização, e que, por isso, o seu domingo de passeio ao sol fora sacrificado, sem contar que fica pensando no que os vizinhos estariam pensando sobre você depois daquela descompostura toda... Todavia, sente-se orgulhosa ao perceber que havia satisfeito o desejo contido de anos atrás, a humilhação do cretino fizera você sentir-se a dona do mundo!
Recomposta, você toma banho, janta, afinal, são quase oito da noite, e põe-se a ver TV, como se nada tivesse acontecido, de repente a campainha toca... Você abre a porta e lá está, a pessoa que você tocara de sua casa há poucas horas... “Quero fazer o que devia ter feito pela manhã do dia seguinte ao que sai daqui anos atrás...” A pessoa lhe toma, beija-lhe e diz querer retomar a relação com você, quer que o aceite de volta, pois quer casar-se com você, que não poderia ser feliz se você não o desse outra chance. Estarrecida, e de volta com a mente bemolizada, mas bem menos que antes, você diz, calmamente, que havia se esquecido de mencionar algumas coisas sobre o seu presente... Você enrola, mas diz que simplesmente você casou-se com a mulher pela qual, na época, tinha sido trocada, e essa mulher, estava por chegar de viagem nas próximas horas...
A pessoa fica mais humilhada e estarrecida possível e lhe pergunta, como que a si mesmo, se vocês duas não gostavam de homens e acrescenta a baboseira de que nunca poderia pensar isso... Você narra-lhe, friamente, que, poucas semanas depois da separação de vocês, mais ou menos, no momento em que sua companheira atual o havia dispensado, mais uma vez, vocês duas se encontraram num boteco popular e dali saíram, passaram a noite, outras noites se sucederam e que agora, já fazia três anos que estavam “casadas”.
Sem jeito, a pessoa, o homem mais canalha da face da terra, tem a ousadia de oferecer-lhe ajuda, como se você precisasse, insiste em lhe dar de volta a paixão pelo sexo oposto, e fala-lhe por mais de meia hora um monte de bobagens, uma pior que a outra... E de repente, o elevador pára no andar e dele sai a sua companheira que olha sem entender bem o que vê, ele põe fé no seu relato e, simplesmente, sai, desce pelas escadas de incêndio, e mais que humilhado, pensa, pela primeira vez na vida, que quer morrer. “Trocar uma mulher pela outra, uma lhe ama, a outra não, você abandona tudo e um dia, depois de anos, volta e encontra essas mesmas mulheres casadas e felizes há anos...”
Um bom boteco na esquina de uma movimentada rua o espera. Segue o homem para lá, bebe todos os conhaques do bar, e acaba a noite sendo carregado por um travesti rumo a um táxi sem um destino previsto...

União

Um conto tonto: A Perfeita União
Certa noite, duas amigas encontraram-se após as aulas noturnas e caminharam em busca de um belo cachorro-quente, afinal, nada melhor para matar a fome de universitários em plena quinta-feira. Escolheram o lugar de quase sempre: o cachorro-quente do posto de gasolina da estrada geral.
Sentaram-se numa mesa localizada ao canto sob a modesta cobertura. Veio o atendente e as entregou o cardápio. O papo começou, a escolha começou. Mesmo já sabendo o que queriam desde a saída do campus, a escolha entre tantas opções de lanches foi demorada. Mais demorada ainda porque a cada opção, um ponto a mais no papo da semana. Quinze minutos se passaram, o atendente voltou à mesa e saiu desolado, as moças não sabiam o que queriam, apenas para variar. O papo era sobre a falta de dinheiro, homens canalhas, falta de opção de homem na terra gay, excesso de livros para serem lidos, homens, dinheiro, fila enorme no restaurante do campus, homens canalhas, garotas metidas, falta de dinheiro... Homens.
Quarenta minutos se passaram e uma das moças chamou o atendente que foi com cara de pastel atendê-las. Ambas pediram hambúrgueres, necessitavam variar. O pedido demorou mais uns dez minutos: tira isso, põe aquilo, abate isso no preço, acrescenta isso... Bem passado, mal passado, a maionese é caseira? Quanto deu? Quanto tempo demora? Queremos logo, temos fome! Ah, não é para prensar!
Enquanto os lanches não vinham, entre o papo fiado de sempre mesclado às fofocas e conspirações acerca da vida misteriosa de alguns bichos estranhos do campus, uma das amigas olha para o balcão e impressiona-se com um quarentão com a cara do gostosão do seriado do momento. Fita-o com aquele olhar quarenta e quatro... A outra observa: Há uma aliança na mão esquerda dele. Dane-se, exclamou a outra. Se esse me desse uma carona até em casa, de lá ele não sairia tão cedo. O quarentão parecia estarrecido com aquele olhar provocador... A moça olhara em volta, avistara uma rua escura... Hummm... Ali mesmo ela mataria sua sede de homem com aquele quarentão. Estava tão cheia de sede que era impossível que o seu olhar não transmitisse seus desejos. Acanhado, o homem fingiu não perceber, apanhou o pedido, entrou no carro e se foi.
Chegaram os lanches. Enquanto comiam, pensavam... Uma no quarentão que havia deixado escapar, a outra no ex-namorado com a nova namorada. Vinte minutos depois, os lanches haviam acabado, pagaram à conta e seguiram estrada à frente. Ainda falavam da falta de dinheiro, dos homens, das contas a serem pagas no dia seguinte... Estavam indo rumo à casa da moça do quarentão, era uma estrada escura, longa... Uma idéia as acometeu, uma idéia que casaria perfeitamente o que ambas precisavam: dinheiro e companhia.
As amigas olharam-se, riram, e aceitaram a idéia vinda das necessidades: Unir a fome com a vontade de comer. Parou, então, uma em cada esquina e lá ficaram a espera de um homem de dinheiro em busca de companhia às onze horas e tanto da noite de uma quinta-feira qualquer.

sexta-feira, setembro 01, 2006

De volta ao Passado

Tirei a segunda e chuvosa noite de férias para pensar em quantas vezes já desejei poder voltar ao passado e arrumar algo que não deu certo; seja lá uma escolha, um (mal) dito, uma (des) atitude; enfim, algo de que eu me arrependa. Passei a vida inteira, da infância até quase esses dias, pensando “Ah, se eu pudesse voltar ao passado, eu não faria tal coisa”, mas depois de ter assistido o filme Efeito Borboleta (EUA, 2004; Direção: Eric Bress J. Mackye Gruber) acho que não pensarei mais nisso.

O filme é sobre um rapaz que tem o poder de voltar ao passado, através de algo que o desperte recordações (diários e filmes), e, assim, tenta arrumar por várias vezes a vida da menina que adora desde a infância e de seus amigos. Porém, a cada vez que volta ao passado, a vida de alguém é drasticamente alterada, seja a de um dos amigos, a da menina, ou a da sua mãe e da sua própria vida. Ele apenas consegue mudar o passado, mas não consegue prever as conseqüências daquelas mudanças, as quais podem ser muito ruins.

Hoje, agora, penso que se eu pudesse voltar ao passado para tentar arrumar alguma coisa, o que eu arrumaria? Não teria ido a x lugar em x hora ou dia, ido embora mais cedo de uma x festa, não ter começado a fumar, não ter deixado de fazer x coisa, não ter brigado com x pessoa? Não sei... De tantas coisas que me aconteceram, a única que eu verdadeiramente mudaria seria a parte de ter começado a fumar, mais nada.

Com o tempo, com as experiências que adquiri, com as reflexões que sempre faço em cima de tudo o que vivo; concluo que se eu tivesse o poder de alterar o meu passado e, assim, deixasse de fazer ou fizesse diferente algo que não tenha dado certo e que me tenha feito chorar, as conseqüências me trariam arrependimentos ainda maiores. Afinal de contas, quem seria eu sem as minhas vivências? Eu não seria nada! Eu não teria nada para contar... Não teria parâmetros para comparar se ando ou não no caminho certo, não poderia nem ao menos arriscar uma prospecção a um amigo. Eu não seria Eu, seria Nada. Não teria visto o mundo, sentido as profundas emoções que senti, não saberia reagir às adversidades da vida, não daria valor a mim, não daria valor aos amigos fiéis e nem à minha família.

Hoje gosto de mim, não me envergonho das minhas experiências mal sucedidas, nem me orgulho, no sentido de deslumbrar-me, com nada que tenha dado certo. Apenas me sinto como alguém que se coloca no mundo assumindo estar aprendendo a viver e a valorizar a própria vida, a qual é constituída de erros e acertos, amigos e inimigos. Não mudaria nada na minha vida, a não ser, reforço, o fato do fumar.