domingo, dezembro 13, 2009

Os desencontros de si e os encontros


Adalberto, acorda, abre as janelas e recebe aquele abafado ar da primavera que vai se despedindo e dando espaço ao verão, recua, olha-se no espelho e percebe que os dias têm lhe passado mais ligeiro que o tempo real. Lembrou-se inclusive das aulas de física e relatividade do professor Cretídio.

Foi até a cozinha, preparou o café na cafeteira e, enquanto essa lhe fazia o serviço único de passar o café, foi até a rua em busca do jornal. Ao abrir a porta, percebeu que havia três jornais lançados à sua porta, intactos. Deduziu faz três dias que não saio de casa... Recolheu-os meio sem graça, entrou e foi verificar o café. Descobriu mais, havia preparado a cafeteira única e exclusivamente para passar a água pura! Respirou fundo. Um, dois e três. Desligou a cafeteira, emborcou a água quente no compartimento, colocou o jarro, o coador, o pó, desta vez o pó! Enquanto isso, abriu a geladeira, retirou seus cacetins envelhecidos, colocou dois dos três na grelha para se renovarem, serviu-se de café, comeu dos pães, apenas um e foi abrir o jornal do dia. Abriu-o, folheou-o e buscou os classificados de emprego. Antes de abrir os classificados, olhou o relógio, eram onze horas, abriu e enfrentou a busca.

Ofertas de emprego para múltiplas funções. Nada para professores de Língua Portuguesa e suas literaturas. Fechou o jornal. Coçou-se, respirou fundo. Olhou as horas, era quase meio-dia... Os dias passavam ligeiramente rápidos para ele; sentia-se envelhecido, sem forças, opaco e sem dinheiro. Os dias passavam lentamente para que chegasse o dia D, o dia de novamente assinar um contrato profissional. Era para talvez estar mais ou menos acostumado, a cada um ano letivo trabalhando tinha junto três, quatro meses sem trabalho, mas desta vez já era demais! Quase nove meses sem trabalho! Um tempo suficiente para um parto.

Decidiu sair aquele dia. Tomou um banho, vestiu-se esportivamente e foi à fruteira do Seu Zé. Escolheu os tomates, o tempero verde, as cebolas, a abóbora cabutiá, as batatas doces e inglesas; ao dirigir-se para pagar, Seu Zé lhe pergunta com tom de deboche se já estava empregado, pois estava sumido; com humilde tom, Adalberto lhe respondeu que já estava quase, estava decidindo umas atitudes. Qual atitudes não foram reveladas ao Seu Zé, pois nem mesmo Adalberto sabia.

Em casa, Adalberto pusera-se a pensar para encontrar uma saída. Não agüentava mais os olhares dos vizinhos, os scraps dos amigos perguntando como estava, se já havia arrumado um emprego, os familiares lhe telefonando... Precisava dar fim a tudo isto e a pôr movimento e dinheiro na sua vida. Situações diversas passaram pela sua mente...

Podia telefonar para algum rico, arriscar dizer que sequestrara sua mulher e pedir uma grana boa o suficiente, mas boa mesmo, o bastante para poder quem sabe... Não, não adiantava, nem um seqüestro falso era capaz de bolar, afinal, não precisava de dinheiro apenas, precisava mesmo era de movimento, isso fora a sua motivação na hora de escolher a carreira, não o dinheiro.

Folheou o jornal. Quem sabe uma idéia, uma proposta. Olhando novamente os anúncios, percebeu os classificados de Procura-se homem que isso e aquilo outro. Um requisito que quase sempre estava presente era saber e gostar de dançar. Jamais imaginara outrora em responder a um anúncio destes! Não era homem de encontrar namorada via jornal. Mas quem sabe um namoro de aluguel? Afinal, namorada não queria, mas dinheiro e movimento sim. Ainda era jovem o bastante, tinha boa aparência, falava também inglês, espanhol e francês, entendia de cinema, literatura, apreciava o teatro, sabia dançar muito bem e gostava de comidas requintadas... As idéias de Adalberto começavam a ganhar vida, começavam a ganhar brilho... E mesmo assim, a maior demanda de trabalho seriam aos finais de semana, quando conseguisse aulas, isso poderia se tornar apenas um bico, e mais, diversão paga.

Olhara seu guardarroupas, tinha ainda algumas roupas boas, aquelas usadas nas formaturas de alunos, tinha apenas um par de sapatos bons, somente estes não lhe bastariam, pois eram apenas bons... Se quer conhecer a origem do homem, olhe para os seus sapatos. Eis o ditado. Adalberto decidiu ligar para o jornal, gastar onze reais e anunciar-se como namorado de aluguel no jornal de domingo.

Era sexta-feira, Adalberto acordou ansioso. Não esperava pela hora de receber a primeira proposta. Pedira cinqüenta reais pela hora. Era hora do almoço e já havia se arrependido, achara tudo uma loucura, pensara nas amigas de sua mãe, de sua avó lhe contratando... Mas agora a sorte ou o azar estavam lançados... Nem mesmo se lembrara de especificar no anúncio que só sairia com mulheres apenas, imaginara as Saritas que lhe telefonariam... Assim que tomara a decisão de ligar ao centro de atendimento ao cliente para cancelar o anúncio, notara que seu telefone, por falta de pagamento, só estava a receber ligações. E agora? Adalberto sem saber o que fazer, percebeu claramente que sim, o dinheiro sim estava terminando, nem para o telefone tivera dinheiro. Teria sim de continuar com a idéia do namoro de aluguel. Passaria então a rezar para todos os santos que Saritas não, definitivamente não iriam lhe aparecer.

Nem bem o jornal de domingo chegou às bancas no sábado, o telefone de Adalberto tocou. Hesitara entre a ansiedade e o temor. Não havia sequer treinado como atenderia ao telefone. No quinto toque, atendeu com um rouco sim. Era sim o seu maior temor Roberta, mulher de trinta procura um homem distinto para acompanhá-la às compras, almoçar em restaurante japonês e terminar o dia com um cineminha. Prometia pagar o dobro por hora, cenzinho por hora, com toda a programação, Adalberto receberia uns seiscentos reais apenas no domingo. Sim. E como, podemos nos encontrar? Como lhe faço o pagamento?

Ondas do Mar da Vida



Chovia e não chovia, chuviscava durante a inerte tarde de outono. Antunes estava sentado frente à janela de sua quase sempre movimentada sala gélida tomando seu café e saboreando seu fumo enquanto se lembrava da longínqua quase esquecida vida à beira mar que vivera em um sonho que realizara e que dele desistira pelos pesados pesadelos que tivera.

O fechado mar azul, a estreita e longa faixa de areia encascalhada, as pedreiras, a bica d’água doce que escorria, os encantados que a habitavam, o céu quase sempre límpido mas nem sempre sereno, o ar, às vezes um tanto esfumaçado, as ruas calmas e nem sempre serenas, os pássaros cantores... O cheiro da vida era um tanto defumado, um tanto mareado, sereno e tenso. Passos leves e constantes que a lugar algum iam, mas que a alma impressionavam em saltos.

Sentado à beira do mar, dentro de um ancorado barquinho, Antunes refletia junto às tensas e baixas ondas de seu mar. Olhava as ondas como se olhasse a si próprio. Olhava a si próprio por suas mãos ainda jovens, mas cansadas de lutar contra o que nem se sabia o quê. Ondas do mar avançavam, quase que brincando com Antunes de entra e não entra barco adentro, de leva não leva o pequeno barco, fazia Antunes perceber que sua vida estava por se transformar. Uma quase transparência em suas mãos fizera-lhe ver sua vida indo e vindo, saltando por dentro das ondas movidas pelo vento nem iam nem vinham, nem levantavam o barco e o guiavam nem o deixavam pleno.

Antunes olhava o horizonte. Via do outro lado do mar que se revoltara, um clarão que quase o cegara. Antunes, por um instante, pensara que sonhava, mas se sentia lúcido mais que nunca. O clarão vindo do céu causara uma forte onda imensa que avançava ligeiramente em sua direção, a forte onda removera o ancorado barquinho e o levara por seu estreito e longo mar. Antunes sentia e não sentia temores, esperanças e calmas.

A noite caira, Antunes enxergava sua vida de sonho. Paz, sossego, frutas e legumes sempre frescos, estradas perfumadas da mata que as cercava, pássaros sempre voando e seus cantos sonorizando sua vida. Num estalo, o ambiente de paz se transformara em um ambiente similar a de uma guerra, a mata que cercava as estradas fora substituída por campos secos e sem vida, o perfume fora substituído por carnificínero odor. Seus pássaros se transformaram em urubus que voavam sobre a terra seca em busca de carniça.

Antunes sentira seu peito se asfixiar, suas pernas endurecer e sua mente abrir. Surgira a sua frente seus amigos de fé, seus amigos quase irmãos, quase pais e mães. Todos os dois; eram dois, eram todos e muitos para si; em campanha para lhe fechar a vida, lhe sugar mais do que já o havia. Ele vira-se amigo dos dois inimigos. Percebera seus dons, suas propriedades, sua vitalidade toda sugada, seu corpo à beira do mar entre as pedras lançado e corroído pelos urubus. Olhou à volta e tudo se perdera. A pequena população se transformara em pó, os amigos inimigos dos inimigos estavam todos em campanha para se destruírem. Sobre o céu de antes, quase límpido, agora pairava uma vermelhidão tenebrosa.

Uma nova onda forte e veloz avançou sobre Antunes. Num estalo, Antunes perdera toda aquela terrível visão, e voltara a enxergar o mar em revolta à sua frente, o pequeno barco em mareado movimento, mas agora um vento frio cortava-lhe a face. Por instantes, Antunes desacreditava do que vivera. Levantara-se, e partira para sua casa. Uma tempestade chegara à beira mar. Muitos raios caiam a sua frente.

Tocara o telefone, era sua amiga Samira. Estava chegando naquele momento em sua casa, vinha de sua viagem ao Peru, intencionava passar uma semana com Antunes. Em meia hora chegaria a sua casa. Antunes preparara o chá que Samira adorava, frutas e chá preto, para esperá-la.

Samira chegara, trocara suas roupas molhadas e, enquanto saboreavam o chá, Samira contou a Antunes um sonho que teve no avião quando voltava para o Brasil.

Antunes estava acompanhado de duas pessoas, em lugar de seus rostos havia um nada escuro, suas mãos eram garras e seus suores eram sangue. Antunes era envolto num vento escuro que o impedia de enxergar os arredores, enxergava apenas a vida daquelas criaturas. As criaturas mantinham-se vivas com a energia de Antunes... Samira o enxergou com sua vida terminando, sua energia vital se extinguindo, sua casa em ruínas...

Antunes ouvira o relato de sua amiga sentindo seu peito asfixiar-se como outrora. Samira era uma amiga de muitos anos de Antunes, ela sempre lhe trazia revelações, fosse por suas vidências, por suas cartas ou por sua pura chegada repentina em sua casa. À ela foi relatada sua experiência da beira mar.

Samira, motivada pelas revelações, partira às confirmações concretas, abrira suas cartas e mostrara a Antunes por meio das imagens que sua vida estava sofrendo naquele momento uma espécie de resgate, um resgate que ele invocara na noite da Rainha do Mar, quando os pescadores rendiam suas homenagens e partilhavam o peixe com os moradores presentes. Antunes, mesmo quase sempre crédulo na amiga, rendeu-se a ela neste momento. Da noite da Rainha dos Mares, nem seus amigos inimigos sabiam.

Samira que nunca tinha tido um paradeiro certo, desta vez o tinha. Estava indo para o sul. Decidira que era hora de empreender-se em algo mais rentável que estavam além de seus dons. Antunes era necessário nisso. Esse era o real motivo de sua visita, convidá-lo a ir viver no sul e para gerenciar a loja que estava abrindo.

Antunes estava estático. Havia 8 dias da festa da Rainha dos Mares. Não sabia que atitude tomar. Chorara feito criança que desperta de um pesadelo.

O importante é realizar os sonhos seja como e onde for. Mais importante que isso é preservar as raízes e os amigos do peito. Tão importante quanto necessário é ter fé nesses sonhos, pois se pesadelo se tornar, como o mar que tudo leva e tudo devolve transformado, a fé vai e o resgate vem.


A vingança

Kadu, Carlos Eduardo, é o bassê do Seu Altair. O Seu Altair já bem senhor, na idade em que nada mais importa a não ser o seu bassê, passa seus dias adulando o seu roliço cão. Kadu, que de roliço já passou há muito à obeso, esfrega-se dia e noite em Seu Altair; acorda quando o Seu Altair acorda, dorme quando Seu Altair dorme, rodeia as pernas, não somente de Seu Altair, mas também as das visitas quando se sentam à mesa para as refeições a fim de ganhar lascas de carne e outros quitutes preparados por Dona Margarida.

Dona Margarida, senhora de Seu Altair, passa seus dias limpando os excrementos do Kadu espalhados pela casa, lavando as capas dos sofás onde além de Kadu insistir em se recostar, Kadu faz xixis; cozinhando quitutes que são apreciados por todos, inclusive por Kadu, e, também, reclamando para o marido do obeso e nojento cachorro.

Certa feita, Seu Altair e Dona Margarida resolvem apreciar o tempo quente do Rio de Janeiro, já que no Rio Grande do Sul, o frio lhes tem provocado dentre outras coisas, uma profunda irritação. Seu Altair deparou-se com um grande problema.

- Como vamos levar o Kadu?

- O Kadu não vai! Diz Dona Margarida, já aflita só de pensar o cachorro no colo de Seu Altair dentro do Avião querendo beliscar os amendoins trazidos pelas aeromoças.

-Como? E quem vai cuidar do Kaduzinho? Quem dará a ele os seus remédios nos horários certinhos? Sabe que ele pode ter um ataque epilético se não tomar os seus três remedinhos diários? Tu sabe disso? Tu sabe também que ele só dorme se eu durmo? Se ele fica com o horário desregulado, ele tem pesadelos? Tu sabe disso, Margarida?

Por fim, o casal de velhinhos teve como salvação para mais uma briga por causa do Kadu, o seu filho mais velho, Hilton, o doutor da família, o advogado. Já que o Hiltinho mora aqui mesmo, não irá se importar de cuidar do Kadu por apenas sete dias...

Partiram então Seu Altair e Dona Margarida para sete dias no Rio de Janeiro. Hilton que os levou ao aeroporto recebeu por duas horas e meia recomendações sobre Kadu. Não vai dormir tarde porque o Kadu tem horário, não vai esquecer dos remédios, não vai isso ou aquilo que o Kadu tem um ataque, que o Kadu tem pesadelo...

Quando o avião partiu, Hilton começou a conspirar contra Kadu, finalmente chegou a hora do embate com o concorrente. Afinal, tudo pro Kadu, ninguém, nem ele mesmo, nem seus irmãos, nem suas filhas e sobrinhos recebiam tanto de Seu Altair quanto Kadu, isso na mesma proporção das enraivações de Dona Margarida, ninguém a enraivava mais do que o roliço e nojento Kadu.

Até o segundo dia, Hiltinho, estava tolerando o cão... Esforçou-se em não alimentar a sua psicopatia, ministrou os três remédios diários de Kadu, que estavam arrumadinhos na caixinha com divisórias diárias, limpou trezentas e trinta e nove vezes os excrementos de Kadu espalhados pela casa, alimentou o cão com a ração especial; só a ração semanal de Kadu era mais cara que as carnes consumidas pelos da casa; além, é óbvio, de trabalhar no escritório atendendo aos malucos que buscavam o advogado Doutor Hilton para resolverem seus problemas mais complexos e, às vezes, ignóbeis; de pegar por duas vezes o congestionamento porto-alegrense.

À noite, já passavam das onze, Seu Altair resolveu ligar e saber como iam as coisas.

-Hiltinho, como está o Kadu?

-Ele está bem, pai. E como os senhores estão aí?

-O Kadu tem comido?

-Tem, pai. E como os senhores estão aí?

-Tu tem dado os remédios dele nos horários?

-Tenho, pai. E como os senhores estão aí?

-Olha só, são três: o vermelho às 8h, o branco ao meio-dia e o azul às 22h! É cada um em um horário.

-Sim. E como os senhores estão aí?

-Tu tem dormido cedo? O Kadu só dorme quando não tem mais ninguém acordado na casa!

-Sim.

-Veja bem, não vai levar os amigos pra aí que o Kadu vai estranhar. É muita mudança na rotina dele! Ele pode ter um ataque mesmo com os remédios!

-Sim.

-Vai dormir, tu já passou muito da hora do Kadu dormir, ele vai acabar tendo pesadelo!

-Sim

-...

Hiltinho estava vermelho e bufando de raiva quando Seu Altair desligou o telefone. Olhou para Kadu e, neste instante, o cão lhe põe a língua para fora e sobe no sofá de pano azul, como se o lembrasse do bendito remédio azul, o remédio para dormir, Hiltinho quase num ataque, atira-lhe o cinzeiro, mas por sorte, não pega em Kadu. Hiltinho sai, respira o ar puro e volta. Olha os remédios de Kadu, respira e ministra o remédio azul; o calmante quem precisa agora é ele próprio, não Kadu.

No quinto dia, pela noite, chegam as visitas que seu pai recomendou tanto que não viessem. Um casal de amigos barulhentos chega de outra cidade para uma visita especial, uma visita ao cemitério para levar algo ao tio. Essa visita promete pernoitar. Hiltinho, nesta altura, prefere os amigos perto para ajudar nos seus planos com Kadu. Afinal, depois de limpar quatrocentas vezes os excrementos de Kadu, pensou nos sofrimentos de sua idosa mãe Margarida...

Feita a visita ao cemitério, os amigos voltam para a casa de Hiltinho e, para acentuar as emoções de Kadu, trouxeram o tio. Kadu parecia começar a planejar um ataque, pois parecia, por seus atos, pressentir que esta noite prometia e que talvez não dormiria, pois agora eram quatro os que não o deixariam dormir.

Conversavam com muita emoção, enquanto Kadu parecendo ter planejado um ataque para espantar as visitar e dar uma lição em Hiltinho, passou a subir à mesa e saltar à pia e saltar ao chão consecutivamente, travessura que nunca havia feito antes. Hiltinho, vermelho de raiva, não sabia o que fazer, quando resolveu lançar Kadu á rua para ver se ele o deixava em paz, já sem importar-se com o que poderia acontecer com o Kaduzinho e nem com ele próprio quando Seu Altair voltasse e, porventura, Kadu tivesse se dado mal. Kadu, ao saltar da mesa à pia, resbalou, caiu batendo com a cabeça na quina da porta do forno que estava aberta por esquecimento do tio que estava tentando assar um galo. Sua cabeça começou a sangrar, e Kadu foi rapidamente perdendo os sentidos e os batimentos cardíacos.

Hiltinho paralisou frente ao cadáver. O tio só exclamou Ave Maria, o homem nem se mexia e a mulher ria.

-E agora? Seu Altair vai ter um ataque! O que que eu vou fazer?

Passaram os quatro, à noite toda, pensando o que fazer. Primeiro tinham que se livrar do corpo. O tio aconselhava fazer o empalhamento do Kadu e dizer ao seu Altair que o cachorro se assustou e endureceu. O homem não dizia nada. A mulher ria e chorava, era melhor enterrar o pobre no cemitério, Hiltinho corria de um lado pro outro e olhava o relógio, daqui à pouco irá clarear e Seu Altair irá telefonar e o que dizer? E quando chegarem em casa? Pior. O cachorro ressuscitar não dá, ou será que daria, perguntou Hiltinho ao tio. Ave Maria, dizia o tio.

Hiltinho de nervoso ou de ataque mesmo caiu sentado no sofá azul em sono profundo. A mulher ria e chorava e também fumava, o tio fumava, bebia e dizia Ave Maria. Quinze minutos depois, Hiltinho levantou com uma grande idéia, vamos fotografar o defunto! E surpreendentemente, desistiu, pois Seu Altair culparia as visitas que ele recomendou que não viessem... Seria pior! Hiltinho desanimou como uma criança. Pela primeira vez, não sabia resolver um problema. Nem o tio poderia aconselhar...

Enquanto decidiam o que fazer com o corpo roliço e obeso do falecido Kadu, clareou o dia. Às 8 horas da manhã, Hiltinho esperava a ligação de Seu Altair para averiguar a medicação de Kadu, eram 8h30 e nada do telefone tocar. Agora que ninguém sairia de casa, pois a qualquer momento o telefone tocaria. Perto da 9 horas, ouviram um barulhão, Hiltinho começou a suar frio, pois reconhecera o barulho das chaves de Seu Altair... A porta se abriu, Seu Altair gritou por Kadu e nada... Ao ver as visitas em sua casa, Seu Altair correu à cozinha e enxergou Kadu estirado e ensanguentado perto do fogão, gritou:

-Kadu! Kadu! Kaduuuu!

Quando estava quase se ajoelhando junto a Kaduzinho, o relógio do cuco anunciou 9 horas da manhã, e Kadu abriu os olhos e pulou nos braços de Seu Altair.

Kadu parecia ressuscitar. Era apenas um desmaio por conta da forte batida, o sangue era proveniente da arrebentação de um pequeno vaso sanguíneo sem muita importância, a não percepção dos batimentos cardíacos era porque tinham enfraquecido com o ministro do remédio azul.

-Nem pra morrer o cachorro roliço e nojento se presta! Exclamou Dona Margarida ao ver a poça de sangue na sua cozinha.

-Hilton! Exclamou seu Altair.

Hilton já estava bem longe nessas alturas com suas visitas.

O Grande Dia



Cidade do interior, verão, 36°C. Stênio acorda, puxa o relógio de passeio de sua esposa e verifica são seis horas ainda, durmo mais um pouco, às sete me levanto. Stênio, pela sua ansiedade, acorda novamente sem despertador são sete! Arruma-se e vai pelas ruas da cidadezinha até a universidade, onde participará de um concurso para professor efetivo.

Que sol forte, pensa, são oito e poucas, não deveria ainda estar assim. Preciso ver as horas... Nenhum comércio está aberto, não passa por mim nenhuma pessoa com relógio... Chega à universidade, mas não há ninguém na portaria para informá-lo das horas e do possível local onde ele encontraria as pessoas.

Onde terá ido o pessoal? A sala é essa, conforme o edital... Stênio anda por todo o prédio, sente-se estranho, quer ir embora, sente-se como que dentro de um conto fantástico, onde tudo pode acontecer e esse tudo só pode ser o do pior possível. A saída? Me perdi, agora se deu a confusão... Acho que vim daquele corredor... Stênio dobra o corredor à sua direita, quer achar a saída e ir embora. Há algo que o diz Se manda, rapaz! Enquanto hesita em apertar o botão do elevador, uma porta à suas costas se abre.

-Ohôhô, grande Stênio, você está atrasado.... Vamos ver o que podemos fazer, vamos à sala da prova, os pontos para as provas dissertativa e expositiva já foram sorteados. Falou um dos professores-avaliadores que, por sinal, conhecia Stênio de longas datas.

Meu Deus, e agora? Não posso mais fugir! E a banca? São todos conhecidos meus! Stênio não sentia mais nem a própria alma. Só podia pensar em que estava fazendo ali e a necessidade de fugir. Na verdade, Stênio já não sabia mais porque queria fugir, apenas queria.

-O nosso amigo chegou atrasado, mas como ainda não divulgamos os pontos, se ninguém da turma se opuser, ele poderá participar.

Vários não, não, por mim, ele pode participar foram murmurados e Stênio não pôde recusar a participação.

Todos estão sentados em seus lugares, à espera da divulgação dos pontos. Os participantes têm direito à consulta às suas anotações referente ao assunto pelos primeiros trinta minutos. Por um momento, Stênio achou-se aliviado, mas suas mãos suavam frio como nunca antes, e o seu coração estava acelerado.

Meu Deus, dos dez prováveis pontos dessa prova, estudei nove. Os pontos foram finalmente divulgados: Análise do xxxxx; prova expositiva: Análise do xxxxx.

Stênio perde a consciência por alguns segundos, pensa em desmaiar, olha para o quadro várias vezes, tenta pensar, sua mente se confunde. Stênio pega os papéis que possui, tenta fingir lê-los, não sabe o que fazer. Meu Deus, por que age assim comigo? A probabilidade de cair o mesmo tema nos dois sorteios é ínfima, o único que não pude estudar!

Stênio sente uma força sobre a sua cabeça e um filme vem à sua mente: a falta do livro que emprestara há um ano e meio ao amigo de sua esposa que, por ventura ou castigo, era um dos participantes daquele concurso; o quebrar do carro no caminho da viagem, o decorrente atraso da viagem em doze horas; a dificuldade em se instalar; o descarregar da bateria do celular (essa durava 15 dias, logo ontem descarregou); o relógio que sua esposa usava ser o de passeio, logo estava atrasado em uma hora (o horário de verão já havia começado há três dias); o decorrente atraso de uma hora na chegada à universidade; a sensação de terror vivida até ali... Deus o avisara de várias formas que não adiantaria de nada insistir naquilo. Realmente, a minha vida está predestina ao capino do sítio improdutivo que herdei e a tolerância com os porres da minha mulher!

O aspirante a professor guardou suas coisas, levantou-se e dirigiu-se à mesa.

-Aqui está!

-Como assim, você vai desistir?

-Vou, porque pensando bem... Stênio soltou um sorriso amarelo e continuou tenho uma bolsa de pós-doc na Argentina já aprovada, e eu queria fazer essa prova por experiência mesmo, mas acho melhor eu ir andando.

Stênio saiu só aos ossos. Não conseguia pensar. Não conseguia enxergar ou ouvir. Saiu da universidade e chegou ao hotel sem saber como, pareceu mágica. Pegou suas coisas, deixou sua esposa dormindo embriagada no hotel, pagou a conta e se mandou para nunca mais voltar à vida que levara até ali.

Disse um amigo meu que a esposa de Stênio se suicidou ao ver que o marido fugira, e que o próprio se tornou hippie e vive hoje de artesanato e erva na Bahia em alguma praia e, de vez em quando, vai aos Xangôs em busca de salvação.