quinta-feira, outubro 18, 2007

Recontos: O assassinato de Guimarães Rosa

O dia em que assassinei Guimarães Rosa e o conto: A terceira margem do rio

Estes (re)contos são frutos de uma cadeira acadêmica que curso neste semestre na faculdade de Letras. Sinto perder a humildade e o senso de perigo ao publicar tais (re)contos. Publico-os por uma questão maior que a de simplesmente expôr por expôr, por querer registrar o ato de coragem e loucura a que me submeti: Recontar Guimarães Rosa. É um ato extremo de quem tem uma missão valendo nota... Recontar é assassinar, lembro-lhe, caro leitor!
Uma observação que devo fazer é a de que assassinei a língua portuguesa propositalmente, assassinei os estilos tradicionais e, talvez, eu tenha assassinado toda a minha sonhada e fututra carreira e o meu blog, espaço esse, até então não profanado...
Outra observação é a de que, na primeira versão, além de assassinar o Rosa, profanei Mia Couto. O que não se faz em desespero!

Veja a primeira versão, a qual descartei por não ter coragem de lê-la:


O Segredo do Rio


Eu, homem sério nascido no sertão, aos trinta e sete anos, com esposa e filhos, acordei um dia resolvido em encomendar uma canoa. Não qualquer canoa! mas uma especial, uma que me desse firmeza para muitos tempos. Quando a canoa ficou pronta, a minha mulher fez seus resmungos, mas nem mesmo ouvi. Fiquei com pena foi do menor, mas não podia negar o chamado que sentia, porque vinha do rio.
Era um dia de sol esse em que parti. Nem mesmo necessidade senti de carregar alguma coisa a mais para a viagem, apenas o chapéu. Parecia que eu tinha até pressa. Sai sem dizer muito, não queria perder o chamado, foi apenas um seco adeus.
Parti. Meu coração quase que perdeu o chamado quando vi o menor tentado a vir com o pai dele. O pobre era de dar pena, pois não queria que eu patisse sozinho.
Semanas já eram passadas que eu só canoava, quando fiz encontrado do que eu sentia ter de encontrar, uma esteita passagem no meio do rio. Era um portão bem estreito que só passava mesmo uma canoa, era feito da cor da lua. Esse eu encontrei na noite da tempestade, não sei dizer onde estava, nunca tinha visto antes, mas apenas pensado ter visto. Isso na noite que quase morri quando era jovem e ia para as aventuras. Passei a passagem e já se fazia dia. Encontrei cidade nova, encontrei trabalho, fiz casa boa com plantação e tudo. Procurei então de volta a passagem para buscar a minha família para morar nessa nova terra, terra abençonhada[1].
Meses passaram, quando descobri uma gruta que ficava aqui mesmo na cidade nova, perto do porto. Os antigos daqui dizem que, com a magia do coração mais a magia da água que corre pelas pedras, a gente pode ver aqueles por quem a gente sofre saudade, e, somente quem bem nos sofre nos vê também.
Sempre via a minha família. Fiquei muito aborrecido quando minha mulher mandou vir aquele irmão dela para cuidar do pouco que era nosso. Tinha medo que ele pusesse tudo abaixo. E pior aborrecimento desta vida foi o da minha filha ter feito casamento com aquela coisa sem eira e nem beira que a levou embora; não queria ver ninguém dessa categoria levando minha filha. Depois, me aborreci mais ainda quando o mais velho abandonou a mãe para ir ter emoção, foi aí que a mulher teve doidera de vez e se mandou para as bandas da minha filha. O que sempre me tocava no peito, mas que também me aborrecia, era o menor. Que doidera foi aquela de ficar me esperando! O moleque, de tanto me imaginar voltar, ficou quase eu em pessoa. Eu que sempre via nele um doutor, agora ver a própria imagem do eu, era de endoidecer. De tanto aborrecimento que via, achava até que era coisa do demo, porque só via o que para mim não existia.
Depois que aquela coisa levou minha filha e mulher, nunca mais consegui as ver. Foi logo, aquele meu cunhado morreu, o que me deu até alívio, e meu menor cuidou de tudo meio sem cuidado, pois só queria cuidar do rio para ver se eu voltava. Cada vez mais que eu ia na gruta, menos eu acreditava que era possível ver verdade. Eu queria mesmo era voltar e ver que tudo ia bem, mas cadê a diacha da passagem? Já tinha percorrido a cidade nova toda, as margens de seu rio, e nada. Eu perguntava pras pessoas mas ninguém dava a direção certa. Eu achava estranho era a noite que nunca vinha. Se vinha, era eu que nunca via. Talvez aquele portão daqui só fosse visto de noite, já que era da cor da lua. Eu procurava nunca fazer dormido para não perder a hora de busca, mas quando ia ver era dia e sempre dia.
Não sei quanto tempo passou até que o meu patrão me disse que eu já poderia ir buscar minha família, mas teria de voltar logo, senão não daria mais para voltar. Pensei que todo mundo estaria lá na margem me esperando. Que nada! Só o menino mesmo. Ah, esse moleque não teve jeito mesmo. Mas olhando assim até dá pena. O rapaz nem quis perder tempo com casamento, mas perdeu toda a vida de fôlego. Agora, vindo ele comigo, eu caso ele com moça boa de família.
Fiz a partida, tomei o chapéu na cabeça, o que há muito não fazia, mas acho que dormi no meio do caminho, porque não vi a passagem, nem mesmo lembro se vi a noite. Cheguei então na margem mesma que parti e lá fiz encontro com o menor. Não sei se ele não me conheceu mais, só sei que ele fez fugido de mim.
Devo ter me aborrecido tanto que nem vi voltar. O sofredor foi tanto que doeu no peito e devo ter tido aquele dormidor de gente fresca. A minha canoa voltou sozinha pra cidade nova me carregando como mágica. Nunca mais consegui por as vistas no moleque pela gruta. Acho que ele abandonou tudo e foi ter com aquele desgosto da minha vida, o desbeirado do meu genro.
Sei que a noite mesmo nunca vi daqui. Diz-se por aí que é porque quando ela vem e quando ela vai tudo dorme e nada a vê. Só mesmo o sol. Sei também que sofri dano do chapéu. Esse fez perdido no meio da última viagem. Agora só trabalho. Sou homem sério ainda, mas agora sozinho para sempre.

[1] Abençonhada: Neologismo criado pelo escritor africano Mia Couto, na obra Terra Sonâmbula.


Veja, agora, a segunda versão:



O primeiro e o último ensinamento: o Grande Rio.


Fora chegada a hora. A hora mesma que a ninguém escapa. A hora da vida prometida nesta terra. Aqui pode ser diferente de aí, porque aqui a hora é ditada pelo rio, aliás, tudo aqui é ditado pelo rio. É como dizem, a vida tem que seguir o seu curso, a vida é como um rio; para a gente desta terra esse era sempre o primeiro e o último ensinamento da vida. É pena que nos dias que correm, os homens não entendam mais esse simples ensinamento; hoje todos têm medo da vida e dos cursos que essa segue. É o rio que um dia, em sonho ou não, mostra, mostrava, os caminhos aos homens desta terra.

Foi assim com Nestor. Ah, o Nestor, homem sério, cuja família se perdeu porque fugiu ao entendimento dos cursos do Grande Rio, da vida. Se perderam todos da mulher ao caçula; eu mesmo vi tudo e até me perdi no final, por piedade. Talvez o próprio Nestor tenha também se perdido nos cursos de seu rio.

Nesta terra fazia sol e tinha sempre uma brisa acolhedora. Quando chovia era de pôr medo até a terra, que parecia até sangrar de dor. Quando os velhos ainda eram ouvidos, eles diziam que se chovia na terra, era porque os homens estavam sendo castigados e só a pura água da chuva poderia apagar deles o pecado da carne que consumia a terra toda em seca plena.
Nesta terra, era costume morar sempre à margem do rio, pois era de onde tiravam o peixe e a água. Mesmo a plantação era movida melhor ali. Era no rio que se nascia e era no rio que se morria.

Nestor despertara certa vez com a idéia de ir pelo rio sozinho para ver o que não se via dali.

O rio era grande, fundo, de águas caldolentas e escuras, era sempre calado, era misterioso. Tinha margens largas, não se via o fim nem o começo dele. Era o próprio mistério. Todos os que saíram por seu curso, jamais voltaram, o que dava medo. Não se sabia se morriam, se viviam melhor, se simplesmente já se eram.

Nestor, em segredo, mandou fazer uma canoa das bem-boas, daquelas que era para quem a queria pelo sempre. Quando a canoa ficou pronta, sua mulher sofreu doideira e ele não nem quis dar conta. Sem quase nem um adeus, Nestor se foi ao rio, em solidão; se foi só de chapéu a mão. O mais novo dos meninos, era de ter pena, era mesmo de sofrer. Era com o pai dele que ele mais tinha sentido das coisas. Agora e sempre, desde a ida, o menino está a esperar a volta do pai.
E Nestor em curso do rio era visto, mas se tentado alcançar, se sumia e ninguém o via e nem podia falar a ele. O mais novo tinha o costume de pôr comida para o pai dele toda noite, como se o pai viesse buscar mesmo. Isso era o costume da terra que se fazia viver no menino, mas que o povo já se esquecia.
Com o tempo, só o menino mesmo via o pai. A família se partiu na desesperança de Nestor voltar. Nestor não voltava e nem ia voltar mais; nem mesmo existia na voz daqueles dele. A família não era mais dele, nem ele mais era dela.
Depois da última chuva, foi isso: se foi o mais velho em busca de aventura, a menina casou e se foi; a mulher, grávida dos não saberes da ira, também se foi. O menino mais novo à margem ficou, a espera do pai que voltaria, sem mais nem menos.
Nem mesmo o menino via mais a imagem do pai dele depois da chuva. E, mesmo assim, o menino se condenou à margem. Todo dia, o menino fazia chamado na beira, mas nada via, nada vinha. O menino que não era mais menino fazia sempre frente ao rio com o entregado da comida de noite e o chamado de dia. A comida sempre se sumia, se consumia como o fôlego daquele que a deixava.
Ao ritual do dia, num dos correntes do curso do rio do menino, ele viu de longe o pai dele. Ele vinha diferente, depois de muito tempo passado. Nestor acenou e o menino, feliz e amedrontado, evocou desejo de com ele fazer trocado de seu lugar, e o pai vinha, como se aceitasse. O apavoramento do não entendimento, do envelhecimento do fôlego já abreviado do menino, fez ele estremecer, correr e chorar.
O menino se perdeu agora do Grande Rio que a ele dava o curso. Era chegada a hora, e o menino a desentender o ensinamento, fugiu. Do pai nunca mais soube nem mesmo viu. Nem frente mais à margem, em ritual do dia e da noite, fez. Nem à margem mesmo foi mais à toa. Ficou só, entregue apenas à dura e seca margem de si, a espera de se secar pelo todo e passar ao rio pelas mãos de outros.

Depois desse último medo do Grande Rio, o rio nada mais ditou. Nem há mais rio, nem mais terra. Tudo se fez perdido nos pecados da carne e nem chuva de água pura vem mais para apagar eles. Tudo secou e tudo inundou. E tudo se acabou.